Noticiou o jornal Zero Hora, em 26 de setembro, que o ministro Marco Aurélio de Mello, do STF, juntou-se ao coro de magistrados de cortes superiores que, nos últimos tempos, têm criticado a atuação de juízes em ações revisionais de contratos de financiamento, em especial no Rio Grande do Sul:
“Estamos vendo magistrados mais jovens acometidos de juizite: acham que são paladinos fazendo justiça a ferro e fogo. É preciso eqüidistância.”
A manifestação foi feita no 26º Congresso da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (ACREFI), realizado no Rio de Janeiro no último final de semana de setembro.
O autor da matéria para lá viajou com as despesas pagas pela ACREFI e registrou que o ministro disse ainda: “O Código de Defesa do Consumidor não deve ser usado como escudo para perpetuar a dívida. E criticou o fato de as liminares permitirem que pagamentos sejam suspensos. A interferência do Judiciário nas relações econômicas atravanca a estrutura da Justiça e penaliza a economia (…).”
A isso, praticamente, se limitou a cobertura do evento. Se o autor da matéria tivesse sido mais jornalista e menos convidado, teria registrado outros dois fatos interessantíssimos do ponto de vista jornalístico.
No discurso de abertura do congresso, o presidente da entidade, Érico Ferreira, fez uma afirmação revolucionária, do ponto de vista da teoria econômica: chamando a atenção para o fenômeno da concentração da renda no Brasil, sustentou ser imperativo “aumentar a renda per capita, elevando a base da pirâmide populacional, mas em nenhuma hipótese, e sob nenhuma desculpa, permitir o achatamento do topo.” Tivesse essa declaração se tornado pública, o seu ilustre autor estaria hoje sendo acossado pelo governo, pelos políticos, pelos teóricos da economia, todos atônicos com a descoberta do que poderia ser chamado de “percentual elástico” e ansiosos pela revelação da fórmula que permitiria aos brasileiros menos aquinhoados – 75% da população atualmente se apropria de 25% da renda nacional – aumentar sua renda per capita sem diminuir a dos 25% que se beneficiam dos 75% da renda nacional restante.
Não surpreenderia, nesse contexto, que a fórmula proposta para a superação das desigualdades sociais fosse exclusivamente o investimento na educação. Mas aqui, mais uma vez, a proposta foi revolucionária: a ela se acrescentou, como item mais importante (sic), tornar obrigatório o ensino do xadrez, desde a infância…
Surpreendente, na verdade, é que um ministro do Supremo Tribunal Federal compareça a congresso dos únicos agentes econômicos, neste país, cujas atividades se mostram imunes às vicissitudes da economia, por razões que não vem ao caso expor, e, ecoando a mesma cantilena que tem aparecido acriticamente em solícitos órgãos da imprensa, se ponha a denegrir a magistratura gaúcha, a pretexto de defender a equidistância.
E o fez mesmo sabendo que estava tratando de matéria jurisdicional, discutida com a garantia do contraditório e do direito a reexame nas diversas instâncias. Não sabia, com certeza da, inocuidade da exposição de sua opinião no meio em que se encontrava, pois pregava para convertidos? Tinha como ignorar, portanto, que a autoridade de suas palavras, resultante, quando menos, da sua condição de ministro do Supremo Tribunal Federal, estava sendo utilizada, por partes interessadas, como meio de pressão e/ou intimidação moral? Não é este, aparentemente, um bom exemplo de equidistância, e o quadro estaria longe de melhorar, por exemplo, se o ministro tivesse ido ao Rio de Janeiro em jatinho de alguma instituição financeira e não em vôo comercial.
Vendo este e outros comportamentos similares, nos últimos tempos, pareceria conveniente que se começasse a pensar em legislação proibitiva da participação de membros do Poder Judiciário, com remuneração por conferência, transporte e hospedagem pagos pelos organizadores, em eventos promovidos por entidades cujos associados são freqüentadores assíduos dos tribunais. E isto, se não para garantir um comportamento que deveria ser ditado pelo próprio senso de dignidade pessoal e de decoro, pelo menos para assegurar que o que alguns identificam como um já perceptível sentimento da opinião pública sobre o que poderia parecer alinhamento do Poder Judiciário aos detentores do poder econômico não se transforme em clamor popular.
Porto Alegre, 03 de outubro de 2005.
Carlos Alberto Etcheverry