“Souza Cruz acredita que uma sociedade democrática é aquela onde todos vivem a liberdade com responsabilidade. Uma sociedade em que o convívio entre as diferenças é harmônico e as escolhas de todos são respeitadas, bem como suas formas de expressão. Porque a liberdade com responsabilidade, além de um valor corporativo da Souza Cruz, é um valor inegociável para quem cresce olhando para o futuro.”
Essa frase edificante está impressa na última página do Anuário da Justiça Rio Grande do Sul 2011, publicado pela revista online Consultor Jurídico. É uma ironia que essa publicação tenha sido patrocinada por uma das maiores fabricantes de cigarro do Brasil. Afinal, o anuário tem como tema justamente o Poder Judiciário de um dos estados em que a indústria tabageira tem tido grande dificuldade para convencer os juízes de que não tem nenhuma responsabilidade pelos danos causados pelo fumo, já que fumar, alegam, é a mais pura expressão do livre arbítrio…
O exercício desse livre arbítrio, já se sabe há algum tempo, coloca no pulmão do viciado em cigarro, além de quatro mil substâncias nocivas à saúde, entre as quais cinqüenta reconhecidamente cancerígenas, também o polônio 210, elemento radioativo descoberto por Marie Curie.
Agora, recente pesquisa realizada na Universidade de Los Angeles sobre nicotina e tabaco revela que esse fato era conhecido pela indústria do tabaco pelo menos desde 1959. A informação veio à tona com o exame de documentos internos dessa indústria, tornados públicos em 1998, em cumprimento de decisão judicial.
Os autores da pesquisa fazem uma afirmação estarrecedora:
“Os documentos mostram que a indústria estava bem ciente da presença da substância radioativa no tabaco ao menos desde 1959. Mais ainda, a indústria era não apenas conhecedora do potencial de crescimento de cânceres nos pulmões de fumantes regulares, mas também fez cálculos radiobiológicos quantitativos para estimar a dose de absorção, pelo pulmão exposto a radiação de longa duração, de partículas alfa-ionizantes emitidas pela fumaça de cigarro.”1
Esses cálculos permitiram à indústria do tabaco inclusive quantificar o risco em longo prazo: de cada 1.000 fumantes, 120 morreriam ao ano por câncer no pulmão diretamente causado por essa radioatividade.
Descobriram os pesquisadores, também, que pelo menos desde 1980 estava disponível técnica para remoção do polônio 210, que jamais foi utilizada em escala industrial porque modificaria quimicamente a nicotina, reduzindo sua absorção pelo cérebro. Ou seja: reduziria o potencial de submissão do fumante ao vício, tornando mais difícil o exercício do “livre-arbítrio”…
A mais importante conclusão a extrair disso tudo, entretanto, é uma só: de forma consciente e deliberada, os fabricantes de cigarro permitiram que milhões de fumantes, de forma absolutamente desnecessária, ingerissem fumaça radioativa. Sabiam, igualmente, que essa radioatividade se mostraria fatal para muitos deles. Sabiam também, com razoável precisão, o percentual daqueles que, fumando por longo espaço de tempo, fatalmente acabaria por contrair câncer pulmonar. E, ao mesmo tempo em que gastavam enormes somas de dinheiro em pesquisas e em publicidade para que o seu produto gerasse o máximo de dependência física e psicológica possível, jamais revelaram aos seus consumidores quão letal o produto realmente era.
A conseqüência legal dessa dupla omissão é muito clara: cabe à indústria tabageira, por ter dolosamente prestado informações insuficientes sobre o produto que fabrica e por não ter usado processo produtivo que permitiria a remoção de substância radiativa que sabia ser cancerígena, indenizar o consumidor que veio a contrair câncer em razão do tabagismo, nos termos do art. 12 do Código de Defesa do Consumidor.
É oportuno observar, a propósito do alegado uso do livro arbítrio, que outra teria sido, provavelmente, a opção do consumidor se tivesse sido devidamente informado sobre a letalidade do produto disponibilizado pela indústria do tabaco.
Aliás, dificilmente se encontraria um caso mais flagrante de necessidade de propositura de ação civil pública, com o objetivo de proibir a venda de produtos contendo tabaco pelo menos enquanto não forem implementadas as medidas necessárias para a remoção do polônio 210.
Com a palavra o Ministério Público e a Defensoria Pública.
Porto Alegre, 23 de novembro de 2011.
Carlos Alberto Etcheverry
- http://www.universityofcalifornia.edu/news/article/26385 – Visitado em 23.11.2011, às 19h. [↩]