Brasil, paraíso da usura (1)

“Após o país bater recorde de endividados em 2021, com cerca de 70% das famílias comprometidas com dívidas, uma pesquisa realizada pela Acordo Certo, fintech do Grupo Boa Vista, mostrou que atualmente 88% dos consumidores brasileiros possuem dívidas ativas. Desses, 57% afirmam que passam por dificuldades na hora de suprir todas as suas necessidades básicas.

“Segundo um levantamento da equipe de Renda Fixa da XP, que utilizou dados do Banco Central, a quantidade de endividados subiu em 21% entre os anos de 2020 e 2021. Por enquanto, o crescimento de 2021 para 2022 é de 4%, aponta Acordo Certo.

“Os dados também representam como o acesso ao crédito segurou a economia do país durante esses anos de pandemia, onde muitas famílias sofreram com queda na renda e tiveram de tomar empréstimos pessoais para conseguir pagar aluguéis, mercados e contas.” (Yahoo!Notícias)

Preocupado com o fato de que os orçamentos familiares comprometidos com o pagamento de dívidas tenha impacto na recuperação econômica brasileira – pois o consumo familiar é um dos maiores motores da economia -, o ministro Paulo Guedes apresentou uma proposta:

“Para aliviar um pouco a pressão do endividamento, o ministro da Economia, Paulo Guedes, quer liberar a utilização do saldo do FGTS para o pagamento de dívidas.
‘Há várias iniciativas que podemos ter até o fim do ano que devem ajudar a economia a crescer. Podemos mobilizar recursos do FGTS também, porque são fundos privados. São pessoas que têm recursos lá e que estão passando por dificuldades. Às vezes o cara está devendo dinheiro no banco e está credor no FGTS. Por que que não pode sacar essa conta e liquidar a dívida dele do outro lado?’ disse o ministro.” (idem)

O Ministro se preocupa, como fica claro em sua declaração, com o crescimento da economia, não com a situação das famílias. É preciso que elas voltem a consumir, e para isso Paulo Guedes não está hesitando em dar ao patrimônio formado pelo trabalhador destino bem diverso daquele para o qual foi criado o FGTS, como explica o próprio governo do qual ele faz parte:

“Com o FGTS, o trabalhador tem a oportunidade de formar um patrimônio, que pode ser sacado em momentos especiais, como o da aquisição da casa própria ou da aposentadoria e em situações de dificuldades, que podem ocorrer com a demissão sem justa causa ou em caso de algumas doenças graves.”

Sabendo-se que a maior parte dessas dívidas – pouco mais de 70%, no caso das famílias paulistanas – diz respeito aos cartões de crédito, uma única conclusão pode ser tirada dessa proposta: o poder público está, na verdade, fazendo duas coisas: retirando dos trabalhadores a possibilidade de usar o patrimônio acumulado no FGTS para as finalidades mencionadas acima e legitimando a atuação desabusada e predatória das administradoras de crédito, responsáveis pela cobrança das mais altas taxas de juros entre as instituições financeiras do Brasil.

E nessa legitimação o Ministro não está sozinho: faz companhia ao Banco Central do Brasil, que tem a desfaçatez de publicar, em seu site, uma relação das taxas de juros praticadas pelo referido setor, na qual consta que a empresa Lecca CFI S.A. inflige aos seus infelizes clientes a taxa de 956,21% ao ano.

O que mais choca nessa cobrança não é apenas a naturalidade do comportamento predatório da instituição financeira, mas a passividade das autoridades, a forma como elas consideram que nada há de extraordinário na conduta da instituição financeira. Como pode o Banco Central fazer de conta que nada tem a ver com a política de juros das instituições financeiras, particularmente quando elas são escancaradamente extorsivas? Sendo missão do Banco Central, conforme declarado orgulhosamente no seu site, “Garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, zelar por um sistema financeiro sólido, eficiente e competitivo, e fomentar o bem-estar econômico da sociedade”, essa escandalosa passividade entra em aberto conflito com esta última missão, pois promove exatamente o contrário: a ruína de expressiva parcela da sociedade brasileira.

A persistir esse comportamento, sugiro uma mudança na redação mencionada acima: “Garantir a estabilidade do poder de compra da moeda, zelar por um sistema financeiro sólido, eficiente, competitivo e lucrativo além de qualquer medida concebível em países civilizados.”

Porto Alegre, 1º de março de 2022.

Carlos Alberto Etcheverry

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Uma resposta para Brasil, paraíso da usura (1)

  1. Adriano Nepomuceno disse:

    Excelente análise!
    O Ministro demonstra também um terrível subproduto do domínio que as elites financeiras têm sobre a viabilidade de candidatos no nosso processo eleitoral!

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